Perceptos e Afectos, texto explicativo e exercícios


Perceptos e afectos

O que são os perceptos e afectos?

Blocos de percepções ou sensações que são criados por artistas, cineastas e escritores. Um artista não cria só um quadro ou uma música, ele cria perceptos e percepções a partir de sua criação. Os perceptos são como que descrições de situações imaginadas ou vividas pelos artistas e nos ajudam a ver o mundo de outra forma. Já os afectos são modos de sentir e existir que atuam sobre a vida daqueles que os observam. 

Qual a maior dificuldade em ver os afectos e perceptos?
 
Acreditar que tudo que o artista cria (livro, poema, quadro, escultura) é apenas aquilo que ele viveu, que sua obra é somente um diário ou um registro de sua biografia. Existem de fato muitas obras que realmente não passam da biografia dos seus autores (o livro de Bruna surfistinha sobre suas aventuras eróticas). Mas de acordo com Deleuze, como veremos, essas obras não passam no teste da independência.

Qual o perigo em nos focarmos demais na biografia?
 
Isso pode nos levar uma preocupação mais com ao criador do que com a criatura, a prestar mais atenção na cozinha do que no prato feito, a buscar fofocas e curiosidades sobre a vida dos criadores e achar que suas criações são meros reflexos de suas vidas conturbadas.  Os reality-shows e as revistas de fofocas chafurdam nessa sujeira a procura de assunto. 

Como saber se uma obra apresenta afectos e perceptos?

De acordo com Deleuze, um quadro (como a Mona Lisa) conserva um gesto (um sorriso misterioso) que já não depende de quem o efetuou (a verdadeira modelo já morreu há tempos). Assim como uma música triste conserva uma tristeza que já não é mais sentida pelo seu compositor; assim como um livro descreve uma paisagem (física ou emocional) que já não depende de quem a viveu pra existir (basta voltar a página e tudo se conserva lá). A arte libera os afectos de nossas vidas particulares e os conserva.  Isso porque ao criar o artista faz com que sentimentos se tornem afectos e aquilo que as pessoas viram se torne percepto (a função do artista é arrancar perceptos das percepções, afectos das emoções, é por isso que afectos e perceptos transbordam qualquer vivido). 
O livro de Bruna Surfistinha, por exemplo, dependa da sua autora pra existir, sem ela, o livro não se sustenta sozinho, quando ela morrer, ou talvez, bem antes disso, o livro já não atraia mais o menor interesse. É pobre de afectos e perceptos, uma obra sem solidez. Ao contrário disso, não precisamos saber como viveu ou quem foram Kafka ou Dostoievsky, mas seus livros contam histórias que vão além de suas vidas privadas e fazem com que nos tornemos parte de sua imaginação.

Como os afectos e perceptos criados nos fazem ver outras coisas, viver outras coisas?

Diz Deleuze: “Há páginas de Tolstoi que descrevem o que um pintor mal saberia descrever. Ou páginas de Tchekov que, de outra maneira, descrevem o calor da estepe. Há um grande complexo de sensações, pois há sensações visuais, auditivas e quase gustativas. Alguma coisa entra na boca”. Como acontece isso? De certa forma, um percepto torce os nervos e faz perceber o que de fato não está lá. Os afectos são devires, isto é, transformações, porque operam modificações na nossa sensibilidade, visão, opiniões. Pergunta-se o autor: que estranhas transformações operam em nos as músicas, com suas paisagens melódicas, seus personagens rítmicos? Que terror invade a cabeça de Van Gogh, tomada num devir girassol?

Por que os artistas criam?
 
Porque viram na vida algo de grande demais, intolerável demais, algo que excede suas forças. Suas obras são tentativas de liberar a vida onde ela se encontra aprisionada, são de certa forma, atletas da percepção ou da sensação, sentiram ou viram algo forte demais para qualquer um. A vida cria zonas de intensidade impossíveis que os verdadeiros criadores ousam atravessar. A vida cotidiana toma formas previsíveis que oprimem outras formas e possibilidades de existir, os afectos dos criadores ampliam as possiblidades, criam sensações e sentimentos que ainda não existem ou que não podem existir na forma e na intensidade que se apresentam, seja porque não somos capazes, seja porque o mundo os julga errados e proibidos.  O artista acrescenta novas variedades ao mundo, novas cores a cor, novos sons a sonoridade. O artista é mostrador, criador e inventor de afectos. Os artistas tornam sensíveis as forças insensíveis que povoam o mundo, tornam perceptíveis estados e situações ainda não perceptíveis ou já não perceptíveis por nós. O músico procura nos fazer ouvir o que até então não se pode ouvir, o que está no limite entre o ruído e o silêncio.

O que os artistas fazem com as sensações ou percepções para transformá-las em afectos e perceptos independentes?

Os métodos são variados e mudam de artista pra artista, é que dá um estilo diferente a cada um, mas em geral os artistas trabalham sobre as percepções. Um dos métodos é a vibração: o artista faz vibrar uma sensação ou percepção (numa música, por exemplo, um refrão forte é repetido várias vezes,). Outro é a saturação: o artista retira da sensação tudo o que é acessório, isola a sensação, examina e a deixa envelhecer e estancar. Outro é o enlace: misturar ou juntar uma sensação com sua variável oposta: muitas músicas trabalham o casamento do amor e do ódio, do ciúme e da indiferença. Há ainda o recuo: ver a sensação de longe, através de personagens criados. Há ainda a divisão (quando duas emoções complexas que andam juntas são separadas). Há a distensão: quando uma sensação é transposta pra outras situações ou pessoas diferentes da original. Existem muitos métodos, grandes artistas procuram inventar sua maneira de saturar as percepções e sensações, procuram inventar sua linguagem. Os escritores procuram sua forma particular de escrever, procuram criar uma língua nova dentro da língua falada. Dentro do português, temos a linguagem de Machado de Assis, dentro do espanhol, a de Pablo Neruda. O escritor procura fazer sua língua gaguejar, dizer algo de forma inédita pra exprimir ou instaurar seus afectos e perceptos, ele procura falar uma língua estrangeira dentro da própria língua.  Manuel de Barros tenta fazer entrar sons e cores, cheiros e sabores nas pedras, nas árvores, nos bichos, em toda natureza. O objetivo é fazer a língua gaguejar, tremer, cantar ou até gritar. 

Qual o resultado da criação dos perceptos?
Os perceptos e afectos criados permitem aberturas, vibrações e enlaces entre os seres humanos, são pacotes de transformações em desenvolvimento. Permitem novos padrões de relações entre as pessoas.  Os perceptos, junto com os afectos e os conceitos, são formas de resistir à banalidade da vida.

Exercícios: 

1.      Leia o Texto abaixo:

1.1   Aquele bote, salva vidas

Aquele bote salva-vidas de um barco mercante que conduzia farinha de Valdívia até o norte, naufragou não se sabe onde. As ondas o jogaram contra a costa e agora repousa no pomar de minha casa, como um animal doce e familiar.
Como recordações que apesar do tempo guardam sua marca inexpressável nas esquinas do coração, ele conserva ainda algas marinhas e diminutas, liquens de águas profundas, esta flora verde e minúscula que decora as raízes dos barcos.  E eu creio ainda ver a marca desesperada dos náufragos, daqueles que na angústia final se agarraram a esta embarcação marinha enquanto a imensa tempestade os perseguia.
Quando o sol ainda não se escondeu, subo neste bote náufrago, abandonado entre as ervas do pomar. Sempre levo um livro que nunca chego a abrir. Estendo meu casaco no banco e estendido sobre ele, vejo o céu infinitamente azul.
Velhas recordações submergidas pelas águas do tempo me assaltam. Sempre, nos ermos da saudade, me assombram esses salteadores indefiníveis. Sempre nos ermos da saudade sinto estrangeira minha alma.  Ruídos inesperados, múrmuros de vozes desconhecidas, cantos oprimidos e novos cantos vencedores, uma música estranha e irrefreável se quebra sobre meu coração, como o vento sobre a selva.
Mulher, nestes momentos te amo sem te amar. Em ti não penso porque em nada se detém meu pensamento. Como um pássaro bêbado, como uma flecha perdida, ele atravessa sem destino até perder-se na obscura distância.
Eu mesmo não me lembro: como poderia me lembrar?
Mas o teu amor descansa mais adentro e bem mais além de mim mesmo. Taça maravilhada que trago até meus lábios, o vinho mais doce, taça de amor. Não preciso me lembrar de ti. Como uma letra gravada profundamente, basta fazer voar a poeira impalpável para te ver. Não penso em ti, mas abandonado a todas as forças do meu coração, a ti também me abandono e me entrego, oh amor que sustenta meus sonhos tumultuosos, como a terra do fundo do mar sustenta as desamparadas correntes e as marés que não se pode conter. 
Pablo Neruda, Tradução: Jorge Alam Pereira dos Santos. 

1.2. Responda as questões abaixo, se possível na forma de uma redação:

a. Na sua opinião o texto revela, descobre ou cria afectos e perceptos? Por quê?

b. Caso o texto seja perpassado de perceptos e afectos (conjuntos de percepções e sensações), descreva as suas impressões sobre ele, o que ele te fez pensar, ver ou sentir?

c. Qual dos métodos de criação foi usado para composição deste texto?

d. Os afectos e perceptos são independentes da vida particular do autor? Sustentam-se sozinhos? Por quê?

2 comentários: